quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Notas de alguém que ouviu Joachim ao vivo

JOSEPH JOACHIM
[1861]

O evento mais importante das últimas semanas foi a aparição de Joseph Joachim[1]. Ele havia tocado em Viena anos atrás como criança prodígio, porém o “homem prodígio” tem permanecido um estranho. Como o lugar de sua educação, se não de seu nascimento, Viena tem razão para se queixar de ser negligenciada por este artista que viaja tanto. Jovem como ele ainda é, Joachim é tido como o maior violinista vivo; se Vieuxtemps é às vezes equiparado a ele, isto é por si só prova de sua grandeza. Não foi tarefa fácil para o artista corresponder à intensa e por muito tempo cultivada expectativa de um público tão experiente como o nosso. Joachim o fez, e de maneira brilhante.

Ele começou com o concerto de Beethoven. Depois do primeiro movimento parece ter ficado claro para todo mundo que ali não estava um mero (e impressionante) virtuoso, mas uma personalidade significante e individual. Por sua técnica, Joachim é tão identificado com o ideal musical que pode se dizer que ele transcendeu a mera virtuosidade para ser transcendental no aspecto musical. Sua maneira de tocar é grandiosa, nobre e livre. Nem o mais simples mordente tem o sabor do virtuosismo; qualquer coisa que invoque vaidade ou aplauso fácil foi eliminada. Esta nobre dedicação causa tamanho impacto que somente algum tempo depois é que o público se da conta da sua imensa bagagem técnica.

Que jorro de energia há no som do instrumento com suas grandes e seguras arcadas! Pela primeira vez nós não escutamos nada de “serrar” e “arranhar”, mesmo no tratamento mais enfático das cordas graves, o que acontece de vez em quando mesmo com outros violinistas famosos. Seu trilo é incomparável na sua pureza e igualdade. Ao tocar passagens polifônicas as vozes individuais são tão coordenadas e tão bem diferenciadas que se tem a impressão de haver mais de um executante no palco.

Baseando-se neste primeiro concerto, poderia se concluir que a grandeza, a nobreza e o trágico seriam as qualidades que mais correspondessem à sua natureza. O concerto de Beethoven, particularmente a apresentação quase improvisatória e profundamente motivada do Adagio, foi prova de sua distinta individualidade. O mesmo concerto soou mais brilhante, mais cheio de vida quando Vieuxtemps o executou; Joachim pesquisou naquela obra mais profundamente e ultrapassou, através de uma verdadeira força ética, aquilo que Vieuxtemps havia conseguido através de um temperamento irresistível.

Em seguida ele apresentou o Adagio de Spohr, do qual a parcialidade perdeu qualquer traço de peso excessivo na interpretação de Joachim através da variedade e força rítmica. O mais surpreendente, contudo, foi sua interpretação da sonata de Tartini “O Trilo do Diabo”. Os violinistas concordarão que esta representa uma técnica colossal e ao mesmo tempo classicamente articulada até o momento sem exemplos. Não somente ele demonstrou bravura com facilidade e segurança; ele até foi capaz de distribuir inúmeros toques significantes através do tumulto de sons, lançando luzes aqui e ali, o que deu à composição um caráter novo e expressivo. Há pouquíssimos violinistas dos quais as conquistas parecem vir tão completamente de uma mesma fôrma, imediatamente tão claras e harmoniosas no seu efeito.

A respeito do concerto de sua autoria “Concerto em Estilo Húngaro” é necessário precaução para se tirar conclusões da extensão e natureza de seu talento criativo. É uma peça muito expansiva e complicada,e , através do papel desempenhado pelo elemento virtuosismo, causadora de grande impacto para ser avaliada inteiramente numa única audição. De qualquer maneira, esta peça ocupou e atraiu a atenção dos ouvintes sobremaneira. Sua significância parece estar mais na energia com a qual o caráter da peça é controlado e a maneira imaginativa com a qual esta energia é variada, do que na riqueza da invenção melódica.

Outras preciosidades, verdadeiras conquistas de uma brilhante e ao mesmo tempo subordinada técnica, foram movimentos selecionados das sonatas de J.S. Bach e uma “Fantasia com acompanhamento de Orquestra” de Schumann (opus 131)[2]. Como não há nenhum traço da vaidade comum do virtuoso nele, deve ter sido seguramente pena o que o fez tocar uma peça ao mesmo tempo tão desagradável e tão difícil. Schumann a escreveu no final de seus dias de lucidez e a dedicou a Joachim.. É um abismo escuro sobre o qual dois artistas se dão as mãos. Martirizante, sombria e obstinada, esta Fantasia desenvolve sua “luta”, fazendo uso contínuo de figuração para compensar pela sua pobreza melódica. Somente raras vezes o cansaço destas características é interrompido por algo harmonicamente ou orquestralmente imaginativo.

Não podemos nos lembrar de termos ouvido o Romance em Fá (opus 50) de Beethoven tocado em público. Beethoven escreveu dois Romances para violino (com acompanhamento de octeto). Ambas [as peças] levam o selo do seu gênio, mas obviamente não são só produto de impulsos criativos. Elas têm a característica de “peças de ocasião”. Apesar de pertencerem ao período que Beethoven foi mais forte e mais individual, muitas vezes recursos obsoletos [composicionais] sugerem seu “primeiro período”. Joachim a projetou com uma amplidão e repouso maravilhosos, tocando a melodia de maneira simples na brilhante corda mi, enquanto que quase nenhum outro violinista teria falhado em dar-lhe cores mais sombrias artificialmente.

Esta grandeza modesta e sem adornos parece ser a mais impressionante qualidade da maneira de tocar de Joachim. Muitos bons efeitos que tocam de imediato são perdidos em razão disto. O estilo amplo e dramático sempre trará admiração que amor: ele ocupa a mente e não pode, em conseqüência, ir direto ao coração. Como no caráter pessoal dos seres humanos em geral, nas individualidades artísticas também encontramos certos atributos que estão fadados a serem mutuamente excludentes. em muitas passagens da peça de Beethoven, a naturalidade estimulante de Hellmesberger[3] teria tocado mais diretamennte a nossos corações do que a inflexível seriedade romana de Joachim.

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Hanslick’s Music Criticisms, Dover 1978, tradução de Clodoaldo Leite Junior, 2006.
[1] Durante sua visita a Viena, Joachim (1831-1907) deu cinco concertos no Musikvereinssaal e um sexto na sala maior Redoutensaal. Nascido em Kittsee, perto de Bratislava, ele entrou para o Conservatório de Viena em 1838 como aluno de Joseph Boehm. Em 1843 ele se mudou para Leipzig e não retornou a Viena até 1861, ocasião dos concertos aqui discutidos.

[2] O mesmo ‘Concerto’ que Yehudi Menuhin ‘descobriu’ e tocou com muita publicidade na
temporada 1938-9.
[3] Joseph Hellmerberger (1828-93), membro de uma distinta família musical vienense e, como Joachim, discípulo de Boehm. Era Diretor e Professor de Violino no Conservatório de Viena, spalla das Orquestras Filarmônica e da Ópera e fundador do famoso Hellmesberger Quarteto. Foi também por um tempo (1851-9) diretor da Sociedade dos Amigos da Música.

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